Não importa de quem é a culpa,
Os condenados somos nós
Crimes inesquecíveis
Como perdoá-los?
Mais nove, mais nove,
Mais nove, mais nove...
É essa a contagem
Navio negreiro
Em brasa de partida
Na estalagem
Remos, rimas
Meninos e meninas
E a mesma sina:
Dores de idas
Silêncio das voltas
Torpor de chegadas
Mais outro, mais nove
Já são mais de sessenta
Inove
Gemidos, espremidos
Confinados, suados
Nos porões carcomidos, petrificados
Deixam suas paixões
Enfurnam-se nos grotões das borras
Masmorras marítimas...
E não se pode mudar a direção
Bordo, estibordo...
Não fazem sentido àqueles
Que não controlam o leme
E não sabem pra onde vão
Na proa, na popa, no convés
Prancha à beira mar
Seguir, zarpar, ancorar
Cantar, sorrir, chorar
Treme o silêncio antes da queda:
Mais um a nadar
E retumbam os tambores
Com o balanço do mar
Nasce o blues, o samba
E outras formas de lamentar
O choro doce da menina
Mistura-se ao som do navio
Que avisa:
Não há mais como voltar
Mas é preciso resistir para outra nação se criar
Para nova flâmula ganhar o beijo do ar
E as lágrimas encontrarem a água do mar
Formando ondas de amor e espuma
Nova aurora há de chegar
Colorindo as lacunas pálidas
Dissolvendo o negror das lástimas
Gingando ao sabor da brisa
Jogando sua mandinga pelo ar
Maldizeres desprovidos de rima,
Tortas loucuras, jogos de azar,
Macumbas, sonhos e desejos
Pra Exú e Iemanjá
Tambores ritmados em coro
Mãos que rebatem o couro
Cantigas de benfazejos
Ecoando pela orla
Revolvendo céu e areia
Num só horizonte
Gamelas vazias viram atabaques
E entoam o ritmo da fome,
Fome que o bicho homem já não pode saciar
Secam as peles infames
Cansadas de tanto sugar
Mas nada tomba o ébano que nasce sob o árduo sol
Brotando entre as ranhuras áridas da terra, o pó
Contorcendo-se em parto doloroso
Até que é chegada a hora.....
E a cada nove meses, o ciclo se renova,
Mais um membro da tribo
Chega à selva dos brancos
Um crepúsculo-alvorada
Envolto pela lava branca da hipocrisia
Mas o negro tem duas peles,
É rijo e persiste
Insiste com o dedo em riste
O barco segue,
A saga muda
E o negro resiste
Ainda que o grito pareça mudo
E a vida amargura
“É preciso içar novas velas,
Mudar a direção”,
Grita Mandela aos anônimos
É sina que separa os antônimos,
No hiato eterno entre negros e brancos
Dígrafos que se arrastam na arrebentação
E oxidam ao sabor da maresia inclemente
Castigando sol após sol condenados e inocentes
Fustigando as vértebras com o fio rude do couro
Pele contra pele, antagonismo febril e sangrento
Ao léu, sem rumo, no relento,
As naus levam a carne crua para ser vendida nas ruas
Pedaços rubros estapeiam-se já mortos
Feridos perenemente sob a ardência do sal ao sol
E a pergunta ecoa pelos oceanos:
Onde e quando essa viagem irá terminar?
Se é que começou, se não estamos a delirar
Poderia tudo ser miragem,
Desejo, estupor
Pouco importa a cor,
Branco ou preto,
Dentro sempre corre o mesmo sangue
Néctar escarlate,
Mote, motim líquido nas veias
Estopim sem fim, quimera
Pólvora que arde na imensidão dos poros
Narinas ressecadas pela chibata invisível
Sombras cortantes,
Dor, odor, calor, rancor,
Humanos, desumanos
Na mesma batalha
Fogueira, flamas dançantes,
Espumas que flutuam errantes
Sem ninguém
Ama, senhor, amantes
Por mal ou por bem
Sacerdócio maldito, sina,
Arautos do húmus, do podre
Ode ao império, ao ouro
Tirado de Minas
Bebericando - estes reis inertes - nas corredeiras douradas
E abóbadas celestes
Das igrejas barrocas
Sistinas capelas, aleijadas
Mutiladas pela maldita adoração ao ouro
Bezerros inertes do mercantilismo
Encantados pela púrpura ganância
E pela sede do falso oásis da riqueza
Que leva os ambiciosos ao deserto da penúria
Misturando-os aos grãos,
De modo que os mastiguem
E os louvem em missas
Pegadas, cascos, apagados pelo vento
Veneno e remédio,
A tentativa de intermédio do homem com o divino?
Épica trilha em busca do imponderável
Do indivisível, da pseudo dualidade
Inexiste entre alma e mente
Da amorfa massa que nos faz sofríveis e amáveis
Seja por mal, seja por bem
E assim seja
Amém
Eduardo C. Mendonça / Rodolfo Araújo